quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Reconstruindo um relacionamento


“A Bíblia é uma coleção de narrativas que testemunha e revela a presença libertadora de Deus na vida de pessoas, especialmente do povo judeu, em diferentes fases de sua história. Muitas personagens e eventos adquirem uma dimensão universal. Essa tensão entre o particular e o universal percorre as narrativas bíblicas. Assim os primeiros capítulos de gênesis possuem a pretensão de universalidade (criação, casal-humanidade, queda e pecado etc.) para todos e todas em qualquer parte do mundo. Esses escritos mostram múltiplas faces da vida religiosa no cotidiano e está entremeada por políticas que caracterizam um determinado momento. A tensão entre vida e testemunho, vida e teologia, é muito intensa, não havendo muito espaço para abstrações ou especulações. A linguagem é muito concreta mesmo quando trata sobre Deus e suas complexas relações com o povo. Puxar um fio do texto é também puxar um fio da vida, como no avesso de um tapete: as tramas da vida formam a textura dos fios que criam imagens, revelam e representam o modo de Deus falar com seu povo.” (JOSGRILBERG, 2011)

As narrativas de Gênesis vão além da narração da criação das coisas e ordenanças. A partir da criação do homem, e em toda a sua história subsequente, Deus constrói um relacionamento “E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia...” (Gn 3.8a). “...e habitarei no meio deles.” Ex 25.8b. Desde o princípio Deus está em meio à vida a ao cotidiano do ser humano. Todo o relato do Antigo Testamento (AT) comprova a existência e a movimentação de Deus, influenciando de forma direta, na vida do povo.
Nessa relação, podemos verificar que a primeira ação de proximidade, parte de Deus. Ele escolheu aproximar-se de Abrão “Ora, o SENHOR disse a Abrão...” (Gn 12.1a), de Isaque “E apareceu-lhe o Senhor...” (Gn 26.2a), de Jacó “Eu sou o Senhor Deus de Abraão teu pai, e o Deus de Isaque” (Gn 28.13) e de todos os patriarcas. E se Deus está intimamente ligado ao seu povo, de igual forma sua palavra é, ou ao menos deviria ser, parte da vida e do cotidiano do povo na atualidade.
A falta de recursos, próprios de sua época, para uma distribuição das escrituras. Fez da oralidade (tradição oral) o maior meio de transmissão dos ensinamentos. Foi justamente a falta de recurso que tornou a Bíblia parte do cotidiano e da vida das pessoas. A oralidade era como uma porta aberta a todos. Relação esta bem descrita no texto A Parábola da Porta de Carlos Mesters:
“Porta estranha. Seu limiar parecia eliminar a separação que havia entre a casa e a rua.
Quem por ela entrava parecia continuar na rua. Quem passava na rua parecia ser acolhido e envolvido pela casa. Nunca ninguém se deu conta desse fato, pois era uma coisa tão natural, como é natural haver luz e calor, quando o sol brilha no céu.
A casa fazia parte da vida do povo, graças àquela porta que unia a casa à rua e a rua à casa. Era a praça da alegria, onde a vida se desenrolava, onde tudo se discutia, onde o povo se encontrava.
A porta ficava aberta, dia e noite. Seu limiar era gasto pelo uso no tempo. Muita gente, todo mundo por aí passava.” (MESTERS, 2011)

Não havia separação. Não falava-se em área social, área amorosa, área religiosa, e tantas outras áreas em que subdividimos nosso viver. Deus era tudo em todos, e aquilo que hoje denominamos como religião, era parte integrante da vida do povo.
A leitura bíblica, em especial a do AT, onde está relatada essa construção de relacionamento de Deus para com o ser humano e através da oralidade de um ser humano para outro encontra-se intrinsecamente na história do povo Judeu. E se recebemos, por herança, esse Deus que relaciona-se com os seus, porque em nossa história e em nossas comunidades de fé nos afastamos Dele cada vez mais? Uma vez que o que deveria ser algo do cotidiano, passou a ser assunto acadêmico.
“É possível observar que a Bíblia, desde a tradição oral até o fechamento do cânon, tem uma relação intrínseca com o cotidiano. Como foi dito pelo prof. Paulo Nogueira, no primeiro século não se lia o texto bíblico, o Codex era muito caro e não dava para transportar os rolos, se isso ocorre no primeiro século, no Primeiro Testamento então era impossível de se ler no cotidiano, por isso a tradição oral, neste contexto é de suma importância. A preocupação maior dos cristãos e cristãs do cristianismo nascente não era ter condições de ler o texto, mas sim observar o eixo de interpretação, que não girava em torno do sentido histórico-literal, mas em torno da preocupação de se ligar antigo ao contexto novo da fé da comunidade, ou seja, como lidar com a proposta dos princípios de fé através do texto no cotidiano (SANTOS, 2011).”

Hoje, o grande desafio é reencontrar esta porta, descrita por Carlos Mesters, é reaproximar o ser humano do relacionamento com Aquele que primeiro veio ao nosso encontro. O desafio é levar o texto de volta para a vida, ao cotidiano das pessoas, para que elas redescubram o sentido de comunidade de fé e serviço (SANTOS 2011).

Uma grande ferramenta para essa reaproximação é o estudo da língua hebraica e dos métodos exegéticos. Esses meios nos permitem chegar o mais próximo possível da realidade, dos costumes, cultura e história dos escritos, do meio de vida e principalmente do cotidiano do povo que primeiro vivenciou a Deus.
Os estudos dos métodos exegéticos nos levam a uma proximidade do texto real. E conhecendo esse texto é impossível ficar indiferente nesse relacionamento. Passamos a entender que precisamos estar por inteiros nessa relação com Deus. E esse envolvimento nos inspira e motiva a levar a outros para fazerem partes deste relacionamento, levando em consideração a construção da história da sua vida. Pois assim a Bíblia foi escrita, levando em consideração a história da vida cotidiana de um povo.
Ainda sobre a tradição oral e sua importância para o povo da Bíblia, hoje o que talvez mais se assemelhe a essa tradição seja o tempo que passamos, ou passávamos, na cozinha com familiares, tias, primos, avós, conversando sobre vida, família e antepassados. Ou seja, trazendo à memória fatos da família e com isso passando de geração em geração o conhecimento da sua história. O processo de formação da Bíblia leva em consideração estas histórias da “cozinha”, ou da casa, do clã, da família. (SANTOS, 2011)

 Aprender. Aprender para reaproximar. Reaproximar para entender. Entender para ensinar. Ensinar para levar de volta a Bíblia ao cotidiano de um povo a muito afastado.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS


JOSGRILBERG, R.. Hermenêutica bíblica e a vida cotidiana o DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v16n1p41-50. Caminhando (online), Brasil, 16, jun. 2011. Disponível em:https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CA/article/view/2536. Acesso em: 16 May. 2015.

 MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. 8ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p.13-20 [A parábola da porta – texto disponível na Plataforma Moodle em PDF.


SANTOS, S.. Bíblia e Cotidiano o DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v16n1p51-58. Caminhando (online), Brasil, 16, may. 2011. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CA/article/view/2526/2665. Acesso em: 17 May. 2015.

Adriano Silva Fermiano é acadêmico do Curso de Bacharel em Teologia da Universidade Metodista de São Paulo

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